O Espírito que dá a vida: refletindo com São João Paulo II

“Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também aos vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).

Nestes dias que precedem a grande Solenidade de Pentecostes, o pensamento e o coração da Igreja — e também os nossos — voltam-se ao Espírito Santo. E ajudam-nos neste caminho os escritos de São João Paulo II, que, há quase 40 anos, publicava sua Carta Encíclica Dominum et Vivificantem – Sobre o Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo, cuja última parte intitula-se “O Espírito que dá a vida”.

Naquela ocasião, em 1986, a Igreja já se preparava para o grande Jubileu do ano 2000, em que se celebrariam os 2000 anos ados desde o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para nós que temos fé, aquela celebração não se localizava somente na escala do tempo cronológico de dois milênios transcorridos desde o advento do Verbo, mas significava muito mais! Era comemorar a chegada da “plenitude dos tempos”, nos dizeres de São Paulo (cf. Gl 4,4); plenitude esta que marcou o momento em que Deus abraçou, de uma vez por todas, a história humana. Nas palavras do Papa Polonês: “Aquele que é o Alfa e o Ômega, que é, que era e que há de vir, assumiu para si a nossa humanidade”. É a grandeza do mistério da Encarnação: Deus não é um senhor distante que habita solitário nos céus, mas sim o Amor encarnado, nascido como nós de uma mãe (cf. Lc 1,31; Mt 1,23), para ser irmão de cada um de nós, para estar próximo; é o Deus da proximidade!

Mas, diante dessa constatação, alguns podem pensar e se perguntar: qual o sentido de se escrever uma Carta Encíclica que fala do Espírito Santo, quando a razão da celebração do Jubileu do ano 2000 seria a Encarnação de Jesus Cristo? Ora, João Paulo II claramente responde ao afirmar que, ao mesmo tempo em que celebrar o nascimento de Jesus é um dado cristológico, não deixa de ser uma celebração pneumatológica, ou seja, do Espírito. E isso porque o mistério da Encarnação se realizou por obra do Espírito Santo (cf. Mt 1,20; Lc 1,35). Essa foi uma grandiosa obra do Espírito na história da salvação: a Encarnação do Verbo, conforme relatam os Evangelhos Sinóticos de Lucas e de Mateus em suas narrações da infância de Jesus, quando contam que o Espírito cobriu o corpo da Virgem Maria, dando-se início, assim, à maternidade divina. E a Igreja acredita nessa verdade, conforme professa no seu Credo, quando reza no Símbolo dos Apóstolos com as palavras: “que foi concebido pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria”… e também no Credo Niceno-Constantinopolitano, com os dizeres: “e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”.

Na Encarnação, portanto, o Espírito, que dá a vida, atinge o ápice de sua ação na história. E Ele, que agiu mesmo antes de Cristo, na economia da Antiga Aliança (cf. Gn 1,2; Is 61,1), e que continua agindo na Igreja e, mesmo fora dela, no interior dos homens de boa vontade, quando é acolhido por qualquer pessoa — assim como nós o acolhemos no dia do nosso Batismo — tem o poder de imprimir em nós a identidade de filhos de Deus (cf. Rm 8,14-17). Ensina o Papa São João Paulo II: “Na Encarnação, a filiação divina torna-se possível, graças a Cristo, que é o Filho eterno. Essa filiação divina é enxertada na alma humana por obra do Espírito Santo”.

Esse é o grande presente que o amor do Pai nos deu e que não nos pode ser tirado! Nesse sentido, ao longo da existência, podemos perder tudo o que construímos com nosso esforço ou aquilo que ganhamos como dom: a saúde; a lucidez; a família e os amigos, pelo tempo que os tirará de nós ou por circunstâncias que distanciam humanamente os corações; podemos ver desfeitos os bens que construímos ou adquirimos, os sonhos que tivemos, o emprego pelo qual tanto lutamos… Tudo é efêmero, tudo é ível de perda. Mas aqui está a beleza do anúncio que nos é feito pela Igreja: mesmo que perdêssemos tudo, permanece-nos a dignidade fundamental como filhos de Deus, recebida no Batismo e restaurada sempre que nos voltamos ao Pai com o coração arrependido (cf. Lc 15,20-24).

Esse é o dom de amor recebido do Pai, cuja origem está em Cristo e que se efetiva por obra do Espírito Santo, fazendo a vida humana participar da vida divina (cf. 2Pd 1,4) e possuir uma dimensão sobrenatural que não pode ar. O Espírito Santo é o Senhor que dá a vida, e, porque somos filhos de Deus, está presente no íntimo de nós, agindo no pensamento, na consciência e no coração (cf. Rm 5,5; 1Cor 2,10-12).

E, a fim de condensar todo o rico ensinamento pneumatológico do Santo Padre, poderíamos explanar a partir de três módulos sobre o agir vivificador — ou seja, doador de vida — que o Espírito realiza em nós:

O Espírito no conflito entre carne e espírito

Primeiramente, São Paulo, na Carta aos Gálatas, escreve sobre uma tensão… uma tensão que agita o coração do ser humano. Um conflito que se caracteriza por uma luta de tendências que habitam em nós, provenientes do espírito e da carne (cf. Gl 5,16-17). A carne tem obras, tais como as discórdias, as invejas, a impureza e tudo aquilo que aponta para um modo de vida fechado, em que a convivência interpessoal é minada por más condutas e atitudes que ferem e destroem, e por uma sexualidade vivida de forma egoísta. Estes levam à morte (cf. Gl 5,19-21)! Por sua vez, o Espírito tem frutos, que são a caridade, a alegria, a temperança, entre outros. Estes levam à paz e à vida (cf. Gl 5,22-23)!

Essa lista elencada por Paulo, conforme a concepção do Papa, faz-nos pensar: será que a nossa vida está de acordo com o Espírito Santo? O meu viver está fecundo desses frutos de caridade, alegria e paz, ou será que estamos sendo levados pelos instintos que se fecham à comunhão e fazem mal a nós e aos outros?

E aqui damos um o: não pensemos que essa oposição ao Espírito se dá apenas de modo subjetivo e pessoal, mas, em tantos momentos da história, ela assumiu uma dimensão exterior, com comportamentos, ideologias e culturas que se opõem aos frutos do Espírito. Dentre essas, São João Paulo II realça, como maior expressão, o materialismo — uma corrente que exclui radicalmente a presença e a ação de Deus, excluindo, inclusive, a possibilidade de sua existência.

Aceitar esse materialismo é professar que a morte é o termo definitivo da existência humana. Diz-nos o Papa: “Se o homem é simplesmente material, mortal, a morte se apresenta para ele como uma barreira instransponível, e a vida humana seria um existir para morrer”. A vida, com todo seu encanto, sonhos, ideais, terminaria na escuridão de um túmulo. Além disso, na civilização contemporânea, pode-se constatar os tantos sinais e vestígios de morte que se tornaram frequentes, reflexos dessa consciência: como a autodestruição nuclear, a miséria e a fome, o ato de tirar a vida de seres humanos antes do seu nascimento ou antes do termo natural.

Diante dessas tintas sombrias que mancham a civilização materialista, levanta-se e permanece, para nós cristãos, uma certeza: a de que o Espírito de Deus sopra onde quer (cf. Jo 3,8), de que nós o possuímos e de que, apesar de estarmos submetidos aos sofrimentos deste tempo que a (cf. Rm 8,18), carregamos em nós a esperança sem defeito de que o Espírito guiará os os da Igreja e de seus membros por caminhos criativos, que farão com que a Palavra de Deus encontre espaços, fortalecendo-nos e conduzindo-nos à graça da redenção. Completa o Papa: “A quem caberá a vitória? Àquele que souber acolher o dom do Espírito Santo!” (cf. Rm 8,37).

O Espírito que fortalece o homem interior

Depois, vemos o Espírito Santo como doador de vida ao nosso eu interior. A Igreja tem consciência de que existe um eu profundo em cada um de nós, e que este, quando influenciado pelo Espírito Santo, é amadurecido e fortalecido (cf. Ef 3,16). E mais: o sopro do Espírito divino, nas profundezas do nosso ser, faz com que o interior do humano compreenda a si mesmo e sua própria humanidade de uma maneira nova. O homem, tal qual criado por Deus, sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,27), do qual Cristo é o protótipo (cf. Cl 1,15), só pode ser entendido e redescoberto sob o influxo do Espírito. Ele faz recuperar aquela nossa face primeira, a da santidade e da harmonia, desfigurada pelo pecado, moldando em nós um coração segundo o coração de Deus (cf. Ez 36,26-27)!

E, quanto mais Ele atua, mais vivemos com humanidade. Quando alguém, ou uma sociedade, age de modo desumano — sem entender o outro, sem perdoar, sem valorizar a dignidade de cada um — é sinal de que as portas estão fechadas ao Espírito Santo… Somente Ele pode tornar-nos cada vez mais humanos e, ao mesmo tempo, amadurecer em nós a consciência do Reino: um Reino vivido como dom e como amor gratuito, desinteressado… O Reino anunciado e vivido por Cristo, que, por meio de um messianismo assumido no serviço, doou-se inteiramente à humanidade ao longo de toda a sua vida, até a entrega derradeira e extrema na Cruz.

O Espírito que age na Igreja por meio dos sacramentos

Por fim, a Carta Encíclica fala-nos do Espírito que é doador de vida por meio da Igreja. O evangelista João, no quarto Evangelho, relata uma afirmação preciosa de Jesus, quando escreve: “É melhor para vós que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu partir, o enviarei a vós” (Jo 16,7). Sabemos que esse anúncio, o do envio do Espírito, se realizou primeiramente na tarde do dia da Páscoa, quando Cristo, aparecendo aos discípulos, assoprou-lhes o dom do Espírito (cf. Jo 20,22). Em seguida, realizou-se em Pentecostes, no Cenáculo (cf. At 2,1-4). Mas será que essa promessa de Jesus, a de enviar o seu Espírito, cumpriu-se e foi finalizada de uma vez por todas em Pentecostes? Não! Diz-nos o Papa: “Desde então para cá, o Senhor continua a realizar o envio do Espírito mediante a Igreja, na história da humanidade”.

Também à luz deste anúncio, Jesus disse: “Não vos deixarei órfãos; voltarei para junto de vós” (Jo 14,18). Ele anuncia sua partida, mas fala de uma nova vinda. Porém, como se dá essa nova vinda? Ora, por obra do Espírito Santo, que faz com que Cristo, que partiu, venha agora e sempre de uma maneira nova. Este voltar de Cristo e a sua constante presença e ação na vida espiritual se concretizam na realidade sacramental. Ensina-nos João Paulo II: “Nesta realidade [a dos sacramentos], Cristo, que partiu na sua humanidade visível, vem, está presente e atua na Igreja de uma forma tão íntima que faz dela o seu Corpo”. Os sacramentos, de fato, significam a graça e conferem a graça: exprimem a vida e dão a vida. Em união com o Espírito, está presente e age Cristo Jesus.

Peçamos, portanto, com a Igreja, mais uma vez, a vinda desse Espírito sobre nós. O Papa, ao se expressar quanto à oração, afirma que “é belo e salutar pensar que, onde quer que no mundo se reze, aí está presente o Espírito Santo, sopro vital da oração”. É belo e salutar reconhecer que, se a oração se encontra difundida por todo o universo, igualmente difundida é a presença e a ação do Espírito Santo, que “insufla” a oração no coração do homem (cf. Rm 8,26-27). E continua: “Se é um fato histórico que a Igreja saiu do Cenáculo no dia de Pentecostes, também pode dizer-se que, em certo sentido, ela nunca o abandonou. Espiritualmente, o acontecimento de Pentecostes não pertence só ao ado: a Igreja está sempre no Cenáculo, que traz no seu coração!”

Junto com a Virgem do Cenáculo, a Senhora cheia do Espírito, possamos rezar com as palavras que a Igreja canta e catequiza, quando pede: “que a graça de Deus cresça em nós sem cessar. E de Ti, nosso Pai, venha o Espírito Santo de amor, pra gerar e formar Cristo em nós”. Amém!